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21/08/2020 | 12:25

Médico que fez o aborto cita casos e mãe católica

Redação TV Mais News

Aos 58 anos de idade, casado e pai de três filhos, o ginecologista e obstetra Olímpio Barbosa de Moraes Filho, responsável pela realização do aborto na criança capixaba de 10 anos vítima de um estupro no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife (PE), é uma das principais referências no Brasil quando se fala em aborto legal. O médico, que já foi excomungado duas vezes pela igreja católica de Pernambuco em razão das suas ações em favor das mulheres vítimas de violência, diz que as políticas públicas relacionadas à saúde da  mulher no Brasil precisam se basear na ciência e não em crenças religiosas. Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à ÉPOCA por telefone.

Como o senhor se tornou referência em abortamento legal e direitos reprodutivos das mulheres?

Olímpio Barbosa de Moraes Filho – Quando eu me formei, em 1986, quase não se falava em aborto. Saí da faculdade com a visão de que o aborto era um crime e que a mulher que o praticava era criminosa. Nunca pensei em trabalhar com isso. Em 1994 fui fazer mestrado e meu objetivo era pesquisar hipertensão na gravidez. Mas, por ironia do destino, um dos temas disponíveis era aborto e ninguém queria estudar esse assunto. Quase não havia publicações sobre o tema, o aborto era considerado problema de pobre, era uma coisa esquecida. Acabei aceitando o desafio e mudei completamente o meu olhar sobre o assunto.

O que te fez mudar a forma de enxergar o aborto?

Na época, a minha co-orientadora foi a socióloga Ellen Hardy, que era casada com o professor Aníbal Fagundes, meu grande ídolo. Ele é referência internacional em políticas de saúde pública voltadas para a redução da mortalidade materna. Quando ela disse que o aborto não deveria ser considerado crime, eu entrei em choque, me assustei. Como poderia uma professora defender que o aborto não era crime? A gente via mulheres morrendo todos os dias no hospital em decorrência de abortos malsucedidos. Elas chegavam ao serviço de saúde desesperadas, com infecções, com hemorragias, com o útero destruído. Aí eu comecei a conhecer essas histórias, sair da teoria e conhecer a realidade. Passei a ver um lado que eu não enxergava e que era possível mudar esse quadro de mulheres morrendo em decorrência de abortos.

De que forma era possível mudar isso?

No final da década de 1980 surgiu o misoprostol [comercialmente chamado de Cytotec], indicado na época para tratamento de úlcera e dores de estômago. Ele era vendido livremente nas farmácias. Com o tempo, percebemos que esse medicamento tinha como efeito colateral provocar aborto. As mulheres grávidas que tomavam não morriam em decorrência desse aborto, como acontecia normalmente. Vimos os números da mortalidade materna despencarem. A comunidade científica internacional começou a perceber que havia algo novo e que o misoprostol poderia mudar o curso da mortalidade materna no mundo. Decidi então fazer doutorado e estudar mais sobre esse remédio. Descobrimos que ele também era seguro na indução do parto. É uma medicação que salva vidas, que reduz o número de cesáreas, diminui o sangramento no útero. Mas a pressão dos grupos pró-vida foi tão intensa que a comercialização do misoprostol foi proibida e atualmente ele só pode ser usado em hospitais. Hoje, ele é a droga mais estudada no mundo todo em obstetrícia e é reconhecido pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo) como uma das três tecnologias mais importantes na ginecologia moderna, ao lado da ultrassonografia e da ocitocina.

Dados do SUS mostram que nos primeiros seis meses deste ano foram feitos apenas 1.082 abortos legais no Brasil. No mesmo período, foram registradas quase 81 mil curetagens e aspirações de abortos provocados ou espontâneos. O que explica essa discrepância?

Embora a gravidez relacionada a um estupro seja muito frequente no Brasil, muitas mulheres ainda não tem acesso ao abortamento legal. Saber que apenas 1.082 mulheres conseguiram exercer o seu direito básico de abortar após um crime é muito pouco. Estima-se que de 3% a 5% das mulheres vítimas de estupro engravidam. Comparei esse número com os dados de aborto legal no Brasil e cheguei num resultado de que apenas 7% das vítimas conseguem ter acesso ao sistema de saúde e abortar seguramente. E isso precisa urgentemente mudar.

Por que poucas mulheres conseguem ajuda? Qual o maior impedimento?

Porque a própria sociedade cria barreiras impedindo que essa mulher busque ajuda. Quanto mais vulnerável, quanto mais pobre for a mulher, mais difícil fica esse acesso. Quando a vítima procura um profissional de saúde, muitas vezes ela nem consegue expor o que aconteceu, ela não tem espaço para isso. Existe uma cultura enraizada de que a gravidez é um presente, é uma benção e que a mulher que engravida tem que agradecer. O médico chega para ela e fala: ‘parabéns, mãezinha, você está grávida, que felicidade’. Como essa mulher vai ter coragem de dizer que foi vítima de um estupro e que não quer esse bebê? Ela vai carregar essa culpa com ela. Vejo meninas chegando no serviço de saúde totalmente destruídas, machucadas, e que ainda se culpam. Até quando vamos ter essa mentalidade? Cerca de um terço das mulheres não desejaram engravidar e a gravidez indesejada é a maior causa de suicídio entre meninas.

Nos seus mais de 30 anos de carreira, o senhor já atendeu centenas de mulheres vítimas de violência sexual. Lembra de alguma história que te marcou?

Todas as histórias me emocionam de alguma forma. E a maioria delas passa por julgamentos morais, de valores. Lembro do caso de uma jovem de 19 anos, da Paraíba, que veio abortar no nosso serviço em Pernambuco. Ela havia engravidado após ser estuprada na saída da praia de Tambaba, uma praia de nudismo. Ninguém queria se responsabilizar pelo caso na Paraíba, numa visão totalmente machista e moralista de que ela não havia sido estuprada, afinal, ela havia estado numa praia naturalista. Por isso eu assumi o caso e ela fez o aborto aqui. Um outro caso que me marcou foi o de uma menina de 12 anos, do interior de Pernambuco, que chegou com a avó no hospital grávida de 21 semanas de um vizinho adolescente. O problema é que as duas eram de família muito simples, moravam num sítio e eram analfabetas. Como proceder nesse caso? A gente não tinha muito tempo, não poderíamos esperar. Decidi prosseguir com o aborto e não me arrependo. Mas foi uma situação extremamente delicada e eu não podia deixar de prestar assistência àquela criança.

O senhor também foi o responsável pelo aborto de uma criança de 9 anos de idade, grávida de gêmeos após ser estuprada pelo padrasto.

Sim, esse caso ocorreu em 2009 e foi amplamente divulgado na imprensa e até filme fizeram a respeito. A criança chegou em uma unidade básica de saúde em Alagoinha, no interior do Estado, para iniciar o pré-natal de uma gravidez de alto risco. A menina tinha pouco mais de 1,30 e estava grávida de gêmeos. A família queria interromper a gestação, mas o arcebispo não permitiu que o aborto acontecesse na maternidade da Santa Casa. Tivemos que tirar ela de lá em segredo e a trouxemos para o nosso serviço, escondida dos religiosos. Quando eles descobriram que ela estava aqui, o procedimento já havia sido concluído. Por causa disso, fui excomungado pela segunda vez pela igreja católica. A primeira delas foi por apoiar a iniciativa de disponibilizar pílulas do dia seguinte em postos de saúde no Carnaval do Recife.

O senhor segue alguma religião? Ser excomungado mudou alguma coisa na sua vida?

Eu sou católico, mas não pratico, sou desgarrado de religião. Estudei a vida toda em colégio religioso. A minha mãe, que tem 85 anos, é extremamente católica. Ela vai à missa todo domingo e o lazer dela é participar de turismo religioso. Agora mesmo ela me ligou chorando e preocupada por causa dos ataques que venho sofrendo. Quando fui excomungado, ela ficou triste, mas ficou mais triste por saber que o arcebispo não ficou ao lado dessas mulheres vítimas de estupro.

O que o senhor acha que deve ser feito para melhorar a política de saúde pública para mulheres vítimas de violência sexual?

A política de saúde pública deve se basear exclusivamente na ciência e não nas crenças religiosas. As duas devem caminhar juntas e não serem inimigas uma da outra. Ninguém é a favor do aborto sem justificativa e eu também não sou

Fonte - Exame

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