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22/03/2019 | 12:26

Carne de sol ou de sereno? Descubra os segredos desse ícone da culinária sertaneja

Redação TVmaisnews

Carne de sol ou de sereno? Descubra os segredos desse ícone da culinária sertaneja

Foto: Reprodução

Se fosse para seguir o nome à risca, aquilo que conhecemos como carne de sol deveria agora se chamar carne de sombra ou carne de sereno. Por definição, a carne de sol é “o resultado do cozimento incompleto da carne de boi, da carne de carneiro, da carne de bode e da carne de porco pela exposição ao sol, depois de convenientemente temperada”, escreveu o escritor, professor e engenheiro Guilherme R. Radel (1930-2019) no livro A carne de sol: um ensaio introdutório. A carne não nasce carne de sol, ela vira carne de sol.

E já faz algum tempo que não é tão comum se ver pedaços de boi cheios de sal pendurados num varal debaixo dos mais de dez sóis que habitam e torram o sertão nordestino. O que era cultura virou lembrança.

Mas vamos deixar o saudosismo de lado: a mudança de hábito até que faz sentido. Primeiro, por uma questão de higiene e durabilidade. “Se deixar em contato direto com o sol, apodrece mais rápido. As pessoas passaram a se preocupar mais com isso, com a segurança”, explica a gastrônoma e charcuteira Bruna Moreira.

Depois, como não podia faltar, vêm o gosto e a textura. Ao sol, a carne resseca mais rápido e fica mais durinha, bem diferente dos cortes macios normalmente servidos nos restaurantes. “Resseca um pouco mais. Quando não levamos a carne ao sol, ela desidrata toda por igual, não fica seca, e isso muda a textura e o sabor”, diz ela.

Cada família faz de um jeito. De acordo com Bruna, a preparação é bem empírica, especialmente nas cidades do interior. “É muito cultural. Não existem normas que dizem o que é ou o que não é carne de sol. Tem gente que salga muito, aí precisa lavar a carne depois. Eu não coloco muito sal, por isso não lavo”.

Mesmo que cada pessoa tenha uma receita, a gente sempre reconhece aquele sabor único na primeira dentada. Aliás, nem precisa comer. Só de olhar já dá para saber o que é, ainda que sejam cortes diferentes e até feitas de bichos diferentes.

“Esse processo deixa um sabor característico, até mesmo se você comer ela crua. Apesar de ter algumas variações, algumas ficarem mais ou menos macias, mais ou menos salgadas, é uma carne que foi desidratada. É importante dizer também que a ventilação também é fundamental  para a desidratação”, conclui a gastrônoma.

Quem vive na capital e já compra o produto no mercado, prontinho para ir ao fogo, talvez não saiba o tempo que leva. A loja Golden Boi, no Mercado do Rio Vermelho, trabalha com um processo artesanal. De acordo com a gerente de produção Ionara Gama, leva cerca de 24h. Todo mundo quer comer, mas, como diz Caymmi, citado no ensaio por Radel, “ninguém quer saber o trabalho que dá”.

Que dá trabalho, a gente já sabe que dá. Mas não mais do que a carne de sertão, também chamada de charque. E veja que o processo é bem parecido: a peça é salgada e passa pelo processo de secagem. Então, fica a pergunta: o que faz o charque ser charque e a carne de sol ser carne de sol? Bruna responde: primeiro, a quantidade de sal. Depois, o tempo. Enquanto que a carne de sol leva um dia para ficar pronta, a prima sulista-sertaneja leva 10.

“O charque passa por um processo de fermentação que a carne de sol não passa. Passa por uma ação de bactérias que deixam aquele cheiro mais forte e gosto tão marcante. E também leva mais sal”.

Do sertão

Só que, enquanto que o charque ganhou fama em todo o país – e até mesmo mundo afora –, a carne de sol parece estar ainda restrita às fronteiras nordestinas. A razão, explica Bruna Moreira, pode ser histórica. “Os tropeiros do Rio Grande do Sul viajavam o Brasil todo com a carne. Acabou que chegou a outras regiões. A carne de sol ficou por aqui mesmo, numa produção mais familiar”, diz ela.

E foi de uma produção familiar que surgiu o restaurante A Porteira, uma das primeiras casas de culinária sertaneja de Salvador. Desde que abriu, há mais de 30 anos, a carne de sol na brasa está no cardápio – e ainda é o carro-chefe. Tudo começou dentro de casa, no sertão da Paraíba, na cozinha da avó de José Klaus Rocha, cozinheiro e um dos sócios. “Minha avó tinha 14 filhos e, na época, não tinha geladeira. Para conservar as carnes, ela salgava, curava, levava ao sol. Um filho foi ensinando a outro, cresceram com esse conceito. Até que minha mãe e meu tio abriram o restaurante”.

A carne que chega ao A Porteira vem de São Paulo, mas vira carne de sol lá mesmo, como que em homenagem à receita da avó. E, como é de se esperar, nada de ficar exposta ao tempo. A cura dura em média 16 horas. “Todas os cuidados são tomados, a carne é feita num ambiente refrigerado, com uma temperatura controlada e de acordo com as normas da Vigilância Sanitária”, explica ele.

Já o Bar da Cruz do Pascoal, que tem como carro-chefe a carne de sol com pirão de aipim, não produz a própria carne  –  traz de uma cidade que já faz isso muito bem, Ruy Barbosa, na região da Chapada Diamantina. Daniel Araújo, gerente do restaurante, conta que a fila de admiradores é grande: por semana, saem em média 100 pratos.

Outro lugar conhecido pela produção da iguaria é Itororó, no sul da Bahia. “Está na minha lista de cidades que preciso visitar, a carne de sol de lá é a mais desejada, todo mundo quer experimentar”, conta Bruna Moreira.

No final da década de 1960, época em que escreveu o livro, Guilherme Radel considerava a carne de sol um patrimônio cultural nordestino. E não aceitava muito bem o fato de que, naquele tempo, ela não era tratada como tal. “Se os nossos nutricionistas ainda não falam sobre a carne de sol, embora a mesma seja a base alimentar proteica do homem do Nordeste, pelo menos deveriam os artistas, menores e maiores, citá-la nos seus trabalhos, fossem músicas populares, contos, novelas, romances ou poesias”.  

(FonteÇ UOL.COM)
 
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